GOVERNO BOLSONARO, ANO IV

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TRAGÉDIAS BRASILEIRAS – COTIDIANO 2

Mariano é meu amigo de adolescência. Nunca foi preciso conversar muito, falar a noite inteira sobre isso e aquilo. As coisas e as ideias estavam lá agrupadas, seguindo naturalmente o curso dos rios. A política ideológica não era uma questão – estávamos do mesmo lado, sem discussão. Nascido em Guarulhos, ele aprendeu a se virar desde cedo. Nunca foi de estudar, mas completou o Ensino Médio. Inteligente, percebeu que o mundo era bem maior do que a Grande São Paulo e traçou uma meta: trabalhar, juntar uma grana e comprar uma passagem de avião para os EUA. Em pouco tempo conseguiu o suficiente pra comprar a passagem e ainda sobrar um tanto. Deu um jeito e entrou no país como turista – nos anos 1970, a fiscalização não era tão rígida.

Enquanto Mariano estava na Califórnia ganhando a vida, eu iniciava minha carreira de jornalista profissional numa grande emissora de rádio. E, enquanto eu só namorava, ele se apaixonou por uma garota brasileira e voltou com ela ao Brasil. Casaram, tiveram um filho. E a vida seguiu a trilha de sempre – havia muito mais afinidade entre nós do que entre ele e a companheira.

Trabalhamos juntos em alguns momentos, jogamos bola em outros, vimos shows e cantamos juntos músicas maravilhosas – não necessariamente de protesto. Era mais um reconhecimento da beleza da arte.

Quando surgiram Lula e o PT, aderimos imediatamente, sem questionamentos de qualquer ordem – a novidade era salutar, e o Brasil parecia ter amadurecido politicamente, por abraçar a ideia de um partido político de esquerda que não fosse radical, como o PCB ou o PC do B.

Lula disputou o governo de SP e teve votação expressiva, terminando em terceiro lugar (1982). Seguiu em frente, disputou três eleições à presidência e perdeu todas. Quando, afinal, se elegeu, no final de 2002, eu e Mariano compreendemos que o PT havia se afastado da sua origem mais “pura”. Fechamos um olho para a dobradinha feita com um empresário, mas aceitamos a ideia de que só assim teríamos chegado à presidência do país.

Então veio o mensalão, fiquei chocado com o “aprimoramento” da compra de parlamentares, e Mariano ficou puto. À essa altura, não nos víamos tanto nem falávamos como antes, mas não havia problema algum – a amizade fraterna continuava ali, sem arranhão. As ideias também.

Vieram as denúncias sobre a Petrobrás, e nos enchemos de raiva – nos sentimos traídos por aquele que ajudamos a defender por tanto tempo. Vieram a “lava-jato”, um canalha de origem libanesa com culpa na cidade de Santos, outro que trabalhou noite e dia para evitar que Lula disputasse as eleições presidenciais de 2018, e a prisão do ex-presidente. Comentamos e nos chocamos diante da avalanche de delações premiadas e notícias ruins.

A vida seguiu e, dia desses, ele me mandou um texto cujo autor destruía o Lula. Fiquei preocupado e perguntei a ele: “Não sei se captei a sua mensagem, mas, por acaso, você vai votar no inominável?” Ele não disse que votaria nele, mas reiterou, com muita raiva, que jamais votaria em Lula de novo. “Por quê, Mariano?” E recebi uma tormenta de ódio que estava represado dentro dele. Meu Deus, pensei, ele não está compreendendo o perigo representado pela turma do inominável e acha que o Lula é igual ou pior. Eu disse que entendia a raiva dele, por ter se sentido traído, mas pedi que não votasse no cara: “Mariano, ele representa um atraso civilizatório, andar pra trás em um monte de conquistas que já haviam se estabilizado, ele é um assassino em potencial, pois, pra levar a cabo sua política ambiental, por exemplo, precisa necessariamente tirar do caminho indígenas e ambientalistas. Além disso, ele está pouco se lixando para pobres, pretos e gays”. Mariano não se comoveu com minha defesa da democracia e ainda me deu uma gozada, como se a ingenuidade estivesse estampada em minha testa.

Fiquei matutando sobre o tom raivoso do meu amigo. Por que essa coisa do “Lula ladrão” pega nele de modo tão visceral, enquanto “rachadinha”, orçamento secreto, imóveis comprados com dinheiro vivo, ameaças a quem pensa diferente, a subtração dos recursos na Educação, na Saúde e no enfrentamento das queimadas, da atividade de garimpeiros e madeireiros não o incomodam? Será que perdi meu amigo em algum ponto da juventude? Não percebi sua personalidade complexa? Ou será que, no fundo, ele nunca foi o que eu achava que ele era?

É possível mantermos o amor por alguém quando este vê todas essas atrocidades como algo aceitável ou menor?
Meu velho amigo Mariano não consegue enxergar a diferença entre Lula e um boçal perigoso (redundância?) que usa a figura de “Deus” para eliminar quem não pensa como ele. O ódio turvou sua visão.

Quando a gente se encontrar de novo, sobre o que iremos conversar?

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