(Capa do disco “Nascimento”, de Milton Nascimento.)
Há pessoas que passam por nós e nos atravessam. Depois somem. E, sem o saber, permanecem. Wayne Shorter era uma dessas pessoas.
Eu já tinha visto o “Weather Report” duas vezes, com ele e aquele outro monstro chamado Jaco Pastorius. Mas nunca havia falado ou estado com o músico no mesmo ambiente.
Em abril de 1986, conheci Wayne Shorter por conta de uma situação absolutamente insólita. O saxofonista veio ao Brasil pra tocar com o Bituca, no “Projeto SP”, uma tenda que se assemelhava a uma lona de circo montada onde hoje é o Parque Augusta e onde, na primeira metade dos anos 1970, reinava imponente um dos prédios mais lindos do país: o do Colégio Equipe.
Eu estava fazendo um frila para uma emissora de rádio e fui até a tenda para acompanhar a entrevista coletiva com os dois músicos. Mas algo saiu do roteiro traçado pela organização do show. Assim que a entrevista começou, as respostas do músico americano passaram a ser mal traduzidas – a intérprete ou tradutora não dominava a língua inglesa. Talvez, ela estivesse substituindo a pessoa que havia sido escalada pra fazer a tradução e não apareceu. Eu nunca soube o que houve.
Depois de algum tempo, cheguei perto da garota e perguntei se queria ajuda. Ela pareceu aliviada e pediu pra eu tocar a tradução para o time de jornalistas que estavam ali. Situação louca, inesperada, quase irreal – mas eu a vivi. Durante a tradução, eu olhava fixamente para o saxofonista – não queria perder nenhum detalhe, queria traduzir tudo o que saía de sua cabeça e coração. Demos algumas risadas e, ao final, Bituca, que eu ainda não conhecia, agradeceu.
A história em si não tem nenhuma importância, a não ser pra mim. Foi muito bom, foi mágico. E, na noite do show, me vi miúdo, sentado na plateia diante de dois gigantes da música. Eu carregava um sentimento de proximidade que não havia perseguido, nem compartilhado com alguém. Hoje, 37 anos depois do episódio, me lembro do sorriso e do olhar-moleque do músico americano que se despede de nós. Que presente!
A música “Ana Maria” foi composta por Wayne Shorter, em homenagem a sua mulher, que morreria num acidente de avião, dez anos mais tarde. “Ana Maria” é uma das canções que recheiam meu álbum de vida. O arranjo, feito pelo Bituca e pelo uruguaio Hugo Fattoruso, no disco “Nascimento” (1997), é delicadamente devastador. Wayne, que era um sujeito engraçado e fazia piada de muita coisa e das pessoas, é um dos gênios da história do jazz, do fusion, da música. Vá em paz, companheiro de viagem. E obrigado por tudo. ⛵
(Publicado em 02/03/2023)