GOVERNO BOLSONARO – ANO IV

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TRAGÉDIAS BRASILEIRAS – COTIDIANO 1

Moro num bairro de classe média que há alguns anos quis ficar bacana – a Vila Universitária, entre o Rio Pequeno e o Jardim Bonfiglioli. Mesmo cercada por três comunidades (duas delas comandadas por traficantes de drogas) e abandonada pelo poder público, construtores viram e ainda veem enorme potencial na área: pirulões metidos a besta são erguidos na vizinhança, carrões entopem as ruas e milhares de pessoas ajudam a sufocá-la. A infraestrutura, no entanto, continua a mesma de três décadas atrás, e mandioqueiros e “padeiros” ainda percorrem avenidas e becos com seus carrinhos de mão e bicicletas com cestas de bolos e pães. São eles que trazem uma lembrança pálida de interior.

Estou limpando o quintal (meu cão passa dos 15 anos de idade e já perdeu a noção de quem é ou de onde está), quando surge na casa em frente um entrevistador do IBGE. Ele toca a campainha, dona Lucinda, 70 anos, aposentada, atende a porta e sai, desconfiada. Ela tem problemas para se expressar – não consegue pronunciar as palavras que começam com consoantes –, mas, mesmo assim, Rodolfo se apresenta e diz que gostaria de fazer algumas perguntas para o censo de 2022. Dona Frida, 75, também aposentada, vizinha e comadre dela, olha para Rodolfo e pergunta, três vezes mais desconfiada: “De onde que é?” O tranquilo Rodolfo repete que ele é do IBGE e a pesquisa é para o Censo de 2022. Ela ri e diz que não sabe de nada, tem muita coisa pra fazer. Dona Lucinda, que também não tem a menor ideia do que seja IBGE, muito menos censo demográfico, ri, escondendo a boca com uma das mãos.

Querendo ajudar o Rodolfo e, ingenuamente, destacar a importância do censo, dou rápidas informações às duas. Dona Frida ri de novo e diz que não quer “saber disso não”, tem mais o que fazer e sai, deixando a comadre sozinha com o entrevistador. Então dona Lucinda chama o marido, José, 71, também aposentado. Ele parece ter mais noção do censo e começa a responder às perguntas formuladas por Rodolfo.

A entrevista acaba em 5 minutos, Rodolfo agradece e toca a campainha de outra casa. Dona Frida aparece no portão e pergunta, sem constrangimentos, se “o japonês (Rodolfo) já foi embora”. Dona Lucinda ri e diz (as duas se entendem perfeitamente bem), meio envergonhada, que ele está ali embaixo, na casa da Tereza.

Pouco depois, Rodolfo vem até minha casa, faz as perguntas, agradece e vai embora. Passa pelo portão de Dona Frida, que resolveu se esconder na cozinha de sua casa simples. Assim que ele some de vista, ela sai e declara, em altos brados: “eu não quero saber disso, não vou ficar contando pra ninguém o que tem na minha casa nem quantas pessoas moram aqui, muito menos quanto eu ganho”.

No dia 30, os três vão votar – sem ter muita noção do peso do próprio voto. Viva o Brasil!

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