DEMARCAR O EXISTIR

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Walter Casagrande Jr., companheiro de trincheira, mandou fotos lindas do dia em que foi realizado o evento “Sem Demarcação não tem Jogo”, em São Joaquim de Bicas, MG, perto da castigada Brumadinho. Ele e a líder indígena Celia Xakriabá organizaram a festa para celebrar a demarcação formal de uma terra – não por parte do governo, é bom que se diga – para os Pataxó, na aldeia Katurãma. Ao final, Casão escreveu uma simples frase: “O dia mais incrível da minha vida”. Ele parecia transformado, anestesiado de amor.   

Sem querer, Casagrande me carregou para 1975, quando eu tinha 18 anos e fui levado para passar uma semana numa aldeia da qual nunca tinha ouvido falar. Éramos eu, a namorada, um amigo-irmão e o pai deles, antropólogo.   

Ao chegar em Marabá (PA), entramos num pequeno avião que balançava horrores e sobrevoamos aquele pedaço da Amazônia até alcançar o município de São João do Araguaia. Que imagem impressionante! O aviãozinho tremia baixo, e as copas das árvores eram deslumbrantes e intermináveis, aquilo parecia um oceano verde. Eu nunca tinha visto nada igual.

A aldeia se chamava “Gaviões de Mãe Maria”, e os indígenas viviam basicamente da coleta e comercialização da castanha-do-Pará. Ao chegarmos lá, fomos recebidos com a curiosidade alegre que saltava especialmente do olhar dos curumins. Me marcou um menino chamado Oripe, que adorava se jogar no rio, lançando-se dos galhos altos das árvores a se debruçarem sobre as águas. A cena, pra mim, era a imagem real da liberdade. 

Foram sete dias na aldeia dos “Gaviões”. Ajudamos a ensacar castanhas, jogamos bola, assistimos à corrida de tora (os homens apostavam corrida carregando toras pesadíssimas nos ombros), nadamos, cantamos e dançamos com eles durante o dia e também à noite, junto do fogo e debaixo das estrelas que forravam o céu do sul do Pará. Estávamos cercados de pessoas generosas. 

Isso aconteceu há quase meio século, e, além dessas cenas que contei, houve algo difícil de descrever (ao tentar fazê-lo, soa banal): o sentimento de irmandade. Mas, mesmo “banal”, depois de tanto tempo, ele permanece em mim.

Esse sentimento me trouxe alguns ensinamentos: a vida é um presente, a natureza é farta e generosa (por que, então, destruí-la?), os bichos da floresta também nos espreitam e têm medo, as crianças são a pureza contida no amplo amor. Sim, os indígenas são seres humanos genuinamente puros – ao se juntar aos brancos, conhecem a cobiça.

Quando deixei os “Gaviões de Mãe Maria”, eu era um outro, alimentado que fora pelo respeito dos adultos e pela alegria contagiante dos curumins daquela aldeia. Eles ainda não tinham sido obrigados a sair das suas terras, expulsos que seriam pela construção da usina hidrelétrica de Tucuruí. 

Muitos anos depois, conheci indígenas de outras tribos, seguindo a estrada aberta pelo querido e fundamental Washington Novaes. Foi quando colhi outro ensinamento: o do desprendimento (ou altruísmo). Não me recordo das palavras exatas, mas um cacique disse a um diminuto grupo de jornalistas e ambientalistas algo semelhante a isto: “Vocês (o homem branco) têm essa coisa de querer permanecer, de deixar marcas na Terra. Nós não, a gente não quer permanecer aqui. Somos misturados à floresta e às águas: nascemos, crescemos e vamos embora. Não ficamos. Ficam os outros”.  

Apesar dos meus apegos, nunca mais fui o mesmo. E talvez seja isso que o Casagrande tenha sentido ao trabalhar com os indígenas, na terra deles, no lugar deles, ainda que vivam sob a ameaça cotidiana de morte.

São esses seres humanos que estão sendo dizimados, gradativamente, pelos capangas dos fazendeiros, por traficantes de drogas e de aves, pelos madeireiros e garimpeiros (matam as águas de seus rios e também os estupram e fuzilam). Todos debaixo do olhar complacente (não seria de aprovação?) do governo federal. Isso tem de acabar.

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