AINDA ESTAMOS AQUI

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Ontem à noite, revivi um estranho período da minha vida experimentado há meio século. Cavei boa parte de minha alma. E, ao fazê-lo, dei de cara com fantasmas que haviam encontrado lugares aconchegantes pra se acomodar nos últimos cinquenta anos.

A passagem do tempo cicatriza, mas a dor não alcança o congelamento – talvez ela vista outras roupas apenas pra seguir vivendo, mas a pele continua lá. Esquecer o que se viveu, aliás, não faz parte do processo de superação.

Ao longo desse tempo vi amigos do meu pai sumirem para sempre – alguns, arrancados da mesa de jantar, diante do olhar aterrorizado dos filhos ainda crianças. Era o terror da incompreensão que se infiltrava no meio da felicidade de um cotidiano comum, forrado de alegrias banais.

Tive sorte porque meu pai nunca foi preso e torturado – apesar de ter cometido a heresia de dar aulas de marxismo para alguns soldados do Exército.

Mas as histórias dos amigos que caíram povoaram minha mente de criança/adolescente e afundaram meu coração em pequenas tragédias interiores. Eu não vi nada e senti tudo.

Consegui transformar o ódio e a vontade de metralhar quem usasse a farda verde-oliva em reflexões e posturas maduras. Não fiz isso para esquecer ou atingir um nível elevado de desprendimento e superação – nada disso. Fiz para me salvar e continuar vivendo uma vida que sempre julguei ser um oceano de beleza.

Hoje, consigo olhar as torturas e os assassinatos sem que a raiva sufoque o meu poder de pensar. E, claro, continuo achando fundamental que se puna aqueles que torturaram, mataram ou mandaram matar. Essas pessoas, que mais se assemelhavam a monstros, têm de estar presas.

Isso, provavelmente, não acontecerá. Mas, assim como ensinei aos meus filhos a lutarem sempre dentro de campo, independentemente do resultado do jogo que estejam disputando, prefiro continuar pensando como o uruguaio Pepe Mujica: “Derrotados não são os que perdem, mas os que desistem de lutar”.

Tudo isso que relatei eu senti ontem à noite, na pré-estreia paulista de “Ainda Estou Aqui”, filme dirigido por Walter Salles e protagonizado pela dupla Fernanda Torres e Selton Mello, que conta a prisão e o desaparecimento de Rubens Paiva e a luta incessante por justiça de sua companheira Eunice Paiva.

Obrigado, Waltinho. Reencontrei os fantasmas de outrora e, pela primeira vez, consegui conversar com eles sem me alterar. ⛵

*Publicado em 19/10/2024

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