CRONOLOGIA DE UMA EXPLOSÃO DEMOCRÁTICA
09 de Abril de 1981. O presidente Vicente Matheus, apoiado nos títulos de campeão paulista (1977 e 79) e no poder desde 1971, não tem mais como se reeleger. Inconformado, aproveita uma brecha no estatuto do clube e se candidata como vice-presidente, colocando um conselheiro (Waldemar Pires) como cabeça de chapa. A jogada dá certo: a dupla é eleita, e Matheus continua mandando no clube – Pires, profissional da área financeira, é apenas uma peça decorativa dentro do Parque São Jorge. Mas aproveita a sombra para se inteirar das tarefas de um presidente.
Fim de Abril. Depois de ter ficado em 26º lugar no Campeonato Brasileiro, entre 44 participantes, o Corinthians inicia a disputa do Paulistão, precisando chegar entre os oito primeiros para se manter na elite. Mas, na estreia, em casa, só empata com o fraco São José, de São José dos Campos.
Início de Julho. Enfraquecido pelos péssimos resultados do time em campo, Matheus é pressionado. Pires cria coragem e assume a presidência de fato. Afasta os diretores ligados a Matheus e descentraliza o poder, permitindo que cada diretor se responsabilize pelo próprio departamento. Dentro de campo, porém, a equipe continua jogando mal e colecionando resultados horrorosos.
Outubro. O conservador Mendonça Falcão, então diretor de futebol, pede demissão e Orlando Monteiro Alves, avô do atual presidente corintiano (Duílio M. Alves), se apresenta para o cargo. Diplomático e habilidoso, Pires nega, mas propõe que Orlando indique o novo responsável pelo departamento de maior visibilidade do clube. Buscando aumentar sua influência, Orlando indica o filho Adilson – sócio do Corinthians desde criança, mas sem o menor conhecimento de como comandar o setor. Adilson, na verdade, tocava a fábrica de biscoitos da família…
Wladimir, titular da equipe desde julho de 1973, comenta com Sócrates: “Isso não pode dar certo… Um cara que nunca trabalhou com futebol, vai dirigir o futebol profissional do Corinthians?”. E cogita deixar o clube.
27 de outubro. O sociólogo e empresário do ramo alimentício Adilson Monteiro Alves chega ao Parque São Jorge coincidentemente com o novo técnico, Mario Travaglini. Em campo, nada se altera, e o time alterna bons e maus momentos, mostrando-se incapaz de embalar no Paulistão.
Noite de quarta-feira, 04 de novembro. Adilson, que até então não havia sido apresentado ao elenco, aparece na concentração dos atletas, num hotel no centro de São Paulo. Espera todos terminarem de jantar e os reúne na sala de conferências.
Wladimir, Sócrates e Zé Maria sentam-se juntos. E veem o que nunca viram em anos de profissão. Adilson diz que é o novo diretor de futebol e está ali para “ajudar o Corinthians”. E então tem início uma sequência de falas aparentemente sinceras mescladas a uma ação tão inteligente quanto arriscada: “Eu não entendo nada de futebol; quem entende disso são vocês, que são meus ídolos. Não sei como fazer, mas sei que do jeito que está sendo feito, está errado. Eu quero mudar isso com vocês, ouvindo vocês. Vamos tentar?”.
A reunião, com previsão para durar quinze minutos, se estende por mais de duas horas. Inicialmente retraídos, os jogadores vão se soltando e passam a questionar as ideias que o novo diretor propõe. Ele diz ser contra a concentração e provoca espanto e uma indagação: “Você vai acabar com a concentração?”. Depois diz que eles, como verdadeiros atores do espetáculo, devem receber participação em todos os contratos de patrocínio feitos pelo clube, e não o “bicho” (prêmio por vitória), que mais parece um pirulito dado a uma criança que fez uma boa ação. A frase provoca alvoroço: “Você vai acabar com o bicho? Como assim?”. O novo diretor não se altera e arranca risos irônicos dos jogadores ao determinar que, a partir daquele momento, ninguém mais entra no vestiário: “Ali é o local de trabalho de vocês. Só entram o presidente, o vice e eu. Acabou aquela bagunça de conselheiros, diretores e torcedores dando tapinha nas costas de vocês. Isso só atrapalha!”. Os atletas afirmam que ele não vai conseguir – prática é antiga, “ninguém vai aceitar isso”.
Lá pelas tantas, Adilson diz que todas as suas propostas e as que vierem dos jogadores terão de ser discutidas e votadas pelo grupo todo, incluindo os integrantes da comissão técnica. Nada será imposto. Sócrates e Wladimir, os mais participativos, se entreolham e compreendem que estão diante de algo inusitado e inédito. E o lateral Zé Maria afirma aos repórteres: “Estou no futebol há quinze anos e nunca vi nada parecido”.
Na noite seguinte, o Corinthians recebe o forte time do Guarani, no Pacaembu. Sócrates faz 1×0, e o centroavante Careca empata, no 2º tempo. Uma semana mais tarde, precisando vencer para continuar na elite do futebol brasileiro, o Corinthians não passa de um novo empate e cai para a Taça de Prata, equivalente à atual Série B. Mas o ambiente muda radicalmente – os atletas se descontraem, jogando um futebol mais vistoso e solidário que os levaria a uma invencibilidade de 23 jogos (perderiam para o Flamengo, no Rio, apenas em 25 de março de 1982).
Casagrande, então um adolescente de 18 anos, voltando de um empréstimo à Caldense (MG) e de malas prontas para defender o América (RJ), é impedido de deixar o clube pelo técnico Travaglini, que o quer na equipe. O atleta então conversa com Adilson e faz um contrato de curta duração pra ver se gosta do projeto. Ele marca quatro gols na estreia, se encanta com Sócrates e, meses mais tarde, acaba se tornando um dos três líderes do projeto mais libertário que já se viu no mundo do futebol profissional: a “Democracia Corinthiana”, nascida por falta de opção, meio sem querer, em plena ditadura militar.
(Publicado em 07/06/2022)