PELÉ

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Pelé e Pedro, na casa do Rei no Guarujá, em abril de 2014. Foto: Hélio Alcântara

Difícil alguém existir no outro? Sim, claro, mas Pelé vive bem dentro aqui. Desde quando descobri o futebol e a bola de meia jogada num apartamento em que os tacos de madeira se soltavam e esfolavam os dedões dos meus pés – sangue bem-vindo.

Ninguém era santista na minha família – meu pai (cearense) era palmeirense; minha mãe (paraibana), Flamengo. Mas minha irmã e eu vimos Pelé nos estádios de São Paulo. E, assim, vestimos o manto do encantamento. Naturalmente, virou parte de nós mesmos.

Pelé era lindo – até correndo era magnífico. E aquele uniforme todo branco do Santos nos magnetizava, especialmente porque a maioria dos jogadores era negra. O contraste da beleza alvinegra nos enchia a alma de cores. É curioso como os grandes ídolos respiram dentro de nós, principalmente os de infância. Eles são nossos amigos íntimos, embora não saibam disso. Nós o sabemos, tanto que os carregamos pra todo canto.

Pelé fustigava a nossa imaginação, inventava liberdades a cada matada, em quase todo drible, no olhar antes de um passe. Ele era o meu Deus. E era muito próximo porque usava calções, meiões, chuteiras e uma camisa limpa que permitia apenas o escudo do Santos na frente e o número preto nas costas.

Ver Pelé em campo significava uma perspectiva no viver, ainda que a vida nos fosse áspera. Ele nos dizia a todo instante que, de repente, tudo se ajeitaria. Bastava ter paciência, força e trabalhar sem parar – sempre na direção do gol. Assim, a mágica surgiria.

Cresci com ele em minha alma e em meus voos por rios, terra, manhãs. Mais tarde, quando o conheci por causa da profissão, foi como se já não houvesse segredos entre nós. Ainda assim, fiquei paralisado ao me encontrar diante dele.

Em 2014, dois meses antes da Copa do Mundo aqui no Brasil, passei o dia na casa dele, no Guarujá. Levei Pedro e Martín, dois dos meus três filhos, para abraçá-lo (Pablo, o mais velho, já o conhecera), enquanto participava de uma longa entrevista para um documentário. Fui criticado por tê-los levado, mas eu queria que eles experimentassem a sensação única de estar diante de um mito verdadeiro, daqueles que transcendem profissão, cidades, países e crenças – não há tanta gente assim no planeta. Ontem, quando a morte do Edson Arantes do Nascimento foi anunciada, recebi uma mensagem do Pedro, hoje com 22 anos: “Eu acho que nunca vou conseguir te agradecer o suficiente por me fazer viver isso”, junto de uma foto dele com Pelé. Explodi um choro de décadas.

Na minha última pergunta, na entrevista conduzida pelo botafoguense Pedro Peixoto, me lembrei de que, certa vez, um repórter quis saber o que Pelé perguntaria a Deus caso o encontrasse. E o deus do futebol, depois de pensar só um pouquinho, respondeu: “Por que eu?”. Então perguntei: “Você já descobriu a resposta pra essa pergunta?”. Pelé sorriu e disse “ainda não”.

Agora, vai descobrir. ⛵

(texto publicado em 30/12/2022)

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